sexta-feira, 23 de maio de 2014

A PRAIA DE KARIM AïNOUZ


A  exuberante eloquência da fotografia de “Praia do Futuro” (2013) de Karim Aïnouz demonstra muito mais  que uma simples escolha de locação ou tentativa de  situar os personagens social e culturalmente. As ondas do mar, a intensa luz  solar, o azul do céu e o forte vento  da Praia do Futuro não são   suficientes para preencher  as angústias e os anseios de Donato (Wagner Moura), o salva-vidas que perde uma vítima para o traiçoeiro mar de Fortaleza no Ceará. 
É nesse ponto de trágico encontro  que inicia a complexa  relação entre o estrangeiro  Konrad (Clemens Schick) e Donato. Por outro  lado, a cinzenta e fria Berlim de Konrad se mostra um  possível porto de felicidade  na vida de Donato. Esse contraponto, por meio da  fotografia, é de uma beleza ímpar, pois sugere os estados de alma do protagonista no seu jogo de perder-se e  encontrar-se  na árdua  busca por um sentido na  vida, pelo amor e pela realização pessoal.

Karim Aïnouz  nos convida  a  mergulhar nesse mar  psicológico do  personagem  Donato que é mais  denso e profundo que o mar   que ele tantas  vezes enfrentou e salvou  outras  vidas. Agora,  Donato  tenta  salvar a sua própria  vida e tomar decisões, o que  parece ser tarefa  mais  difícil que o seu  próprio ofício de guarda-vidas. O sumiço do corpo  do afogado cria uma atmosfera  tão enigmática e misteriosa que a cena das  buscas no mar bravio  lembrou-me “A Aventura” (1960) de Antonioni, que  também mostrava  um desaparecimento como  ponto de partida  para o envolvimento de paixão entre um  casal   e os desdobramentos psicológicos que se desenrolam a partir do sinistro incidente no  grupo de amigos  em uma ilha no mar Mediterrâneo.
Mais  uma vez, Karim Aïnouz explora  com maestria  a complexidade das  relações de afeto entre as pessoas. Se no filme anterior  “Abismo Prateado” (2011) acompanhamos Violeta (Alessandra Negrini) em sua dor de amor gerada  pelo súbito abandono do marido,  em  “Praia do Futuro” há um triângulo amoroso não convencional  envolvendo o  irmão Ayrton (Jesuíta Barbosa) que é abandonado e esquecido ainda criança na isolada praia pelo irmão mais velho Donato que decide morar  na Alemanha em  companhia  de  Konrad. A difícil equação das contas que envolvem o  amor fraterno de Ayrton e o amor de Donato por  Konrad parecem, à primeira vista, não ter uma solução feliz. Há uma contextura de ressentimento e revolta que vão se acomodando à medida que os irmãos se reencontram, anos  depois, em Berlim. Já o sentimento de Donato  por Konrad não suporta o  grande vazio deixado pelas  referências e  laços de afeto ligados às  origens do brasileiro em seu autoexílio. 
          É um filme  sobre  buscas. A busca por conhecer a si mesmo, a busca pelo outro, a busca pelo irmão-herói amado da infância, a busca pela zona de conforto almejada por todos, mas que não está  em  uma bela paisagem de um país tropical “onde se tem a obrigação de ser  feliz” ou na possibilidade de segurança financeira e profissional  num país frio e cinzento do primeiro mundo. “Ouvi dizer que no Brasil todas as pessoas são felizes!” – retruca a atendente do pub alemão onde Donato se embebeda.                                                                                                                


O filme  causou um burburinho desnecessário no Festival de Berlim, nas redes sociais e na mídia aberta por  conta  das  poucas  cenas  de sexo e  nudez  entre os  dois  protagonistas.  Recentemente, uma rede de cinemas alertava, carimbando nos  ingressos a palavra “AVISADO”, caso  os  espectadores reclamassem do teor homossexual dos  personagens. Definitivamente o filme não é  um “filme gay”. É um filme  sobre a nossa frágil e complexa  humanidade.    Na sessão em que estive, perdi a conta de tanta gente que abandonou  o filme logo nos primeiros 25 minutos. Também pude perceber a reação preconceituosa da plateia diante  das  cenas de sexo. Havia muitos  jovens na sala rindo e debochando das atuações de Wagner Moura e Clemens Schick. Acredito que eles entraram no cinema para  ver se o “Capitão Nascimento” ressuscitava  ou  para ver o ator  das novelas. Eles não foram ver  o ator em seu criativo e desafiador  ofício de fazer mais um personagem. Para esse público restam as neo-chanchadas  de gosto duvidoso do atual cinema brasileiro com suas mesmas historinhas cada vez mais rasas e sem conteúdo . 
 De fato, a  praia de Karim Aïnouz não pode e nem deve ser  frequentada por qualquer um. Não  por  ser  uma praia  perigosa de ondas grandes. A praia de Karim exige  um  pouco mais de inteligência ou apenas  legitima  curiosidade  dos  seus frequentadores. A praia de Karim Aïnouz  ainda assim está com livre acesso a todos. Bom mergulho!






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